Trazemos hoje para o leitor alguns comentários de um poeta português muito famoso mas pouco conhecido. Nascido em 1890, na Baixa Pombalina de Lisboa numa família de boa classe média, esse menino perdeu a mãe aos dois anos de idade. Quatro anos após seu nascimento, o pai entrega-o aos avós para dedicar-se a uma vida de incessantes viagens. Filho único, provavelmente foi criado com muito mimo pelos avós e uma ama, época em que começam a moldar-se as características de menino mimado de enfant gâté que nunca desaparecerão de sua vida. Estou falando de Mario de Sá-Carneiro. Aos 14 anos, ao conhecer Paris, ficou maravilhado, daí uma paixão exacerbada pela capital francesa que significará para ele a oposição ao provincianismo português.
Desde 1902, começa a escrever poesias e pequenos monólogos para o teatro, chegando a ter uma experiência como ator. Era a arte que entrara avassaladora em sua vida de jovem solitário, tímido, inseguro que se desgostara com a própria aparência em que se transformara.
Na noite de 26 de abril de 1916, os empregados de um hotel de preços módicos em Paris foram chamados às pressas para depararem-se com uma cena dantesca a desenrolar-se em um dos quartos. Um português gorducho, um de seus hóspedes permanentes, com 26 anos de idade, encontrava-se em seus últimos estertores de uma terrível agonia, vestido de smoking, após haver ingerido cinco doses de estricnina. Assim terminava, perdida em meio à voragem da Primeira Guerra Mundial a vida de um dos maiores poetas e ficcionistas portugueses do século XX, Mario de Sá-Carneiro, num ato tão bombástico que coincidia com sua estranha personalidade.
Talvez o fato mais importante de sua biografia foi ter conhecido Fernando Pessoa. Começa aí uma amizade perfeita, um desses raros casos de afinidade eletiva que seria desfeita por seu suicídio. Nos momentos de completa carência financeira, chega a ser sustentado pela amante, verdadeira glória para um homem sem autoestima que sempre fora.
"Eu queria ser mulher para ter muitos amantes
E enganá-los a todos — mesmo ao predileto —
Como eu gostava de enganar o meu amante loiro, o mais esbelto
Com um rapaz gordo e feio, de modos extravagantes..."
Não há como não reconhecer o autoretrato do autor nesse verso reproduzido acima. Quanto ao poeta enterrado três dias após o suicídio, conseguiu ficar para sempre na sua idolatrada Paris, tendo seus ossos, mais tarde, atirados ao depósito comum por ninguém os reclamar. Assim se cumpria a profecia que fizera no poema que dava título ao seu primeiro livro:
"E sinto que a minha morte —
Minha dispersão total —
Existe lá longe, ao norte,
Numa grande capital."
Como um aperitivo aos leitores, deixaremos aqui uns poucos versos do poeta. Quem sabe eles atrairão alguém que queira conhecer mais a fundo Mario de Sá-Carneiro:
"Quando eu morrer batam em latas,
Rompam aos saltos e aos pinotes —
Façam estalar no ar chicotes,
Chamem palhaços e acrobatas.
Que o meu caixão vá sobre um burro
Ajaezado à andaluza:
A um morto nada se recusa,
E eu quero por força ir de burro..."
Como se pode deduzir, sua produção é fortemente marcada pelo sentimento de inadequação em relação ao mundo, a incessante busca pelo verdadeiro "eu" e os pensamentos suicidas. Atuou também como autor de teatro, contista e tradutor.