Começo o artigo de hoje, como faço quase sempre, relembrando uma antiga passagem mitológica oportuna e capaz de nos proporcionar bons exemplos nos tempos atuais. Giges, um pastor da Lídia, um dia, conduzindo um rebanho através dos campos, percebeu, sob uma colina, a abertura de um túnel. Enfiou-se por ela a dentro e foi dar numa espécie de abóboda subterrânea onde viu um enorme cavalo de bronze em cujo flanco havia uma porta. Giges, curiosamente, abriu a porta e procurou entrar no bojo do cavalo. Havia lá dentro um esqueleto humano de altura prodigiosa e no dedo do esqueleto um anel com uma bela pedra encastoada. Tomou o anel, meteu-o no dedo e voltou à superfície da terra. Ora, o anel gozava nada menos de uma propriedade singular, que o pastor logo percebeu: todas as vezes que punha o engaste para o lado da palma da mão, a pessoa tornava-se invisível. Giges, ambicioso, logo percebeu o poder e a riqueza que estavam a seu alcance.
Poderia ter o que almejasse, glórias, honrarias, penetrar onde quisesse, sem ser visto, obter o que lhe aprouvesse sem se dar a conhecer. Foi então que se dirigiu à corte do rei Candaulo, que o fez valido (aquele cujas ações têm valor legal) da corte com poderes discricionários. Um dia, o rei mostrou-lhe o corpo nu da rainha, sua esposa, quando esta tomava banho. Ambos contemplaram o corpo admirável da jovem. Indignada, esta pediu a Giges que matasse o rei. Este assim fez e como era muito perspicaz acabou casando-se com a rainha e assumindo o trono da Lídia.
Esse mito foi apresentado por Platão no livro II da República. A intenção dele foi provocar o leitor para a reflexão sobre a certeza se somos ou não justos e honestos voluntariamente, ou se praticamos a justiça e fazemos uso dos bons princípios porque somos impelidos a fazê-lo pelo contexto no qual estamos inseridos.
Há quem diga que o poder revela a índole de uma pessoa. Sempre usei nas conversas uma frase, que sedimenta a sabedoria de vários séculos: "Se quiser conhecer o vilão, dê-lhe o poder nas mãos." Giges revelou sua verdadeira face quando adquiriu o poder da invisibilidade concedido pelo anel de ouro. Vamos especificar e escolher aqui a classe política para testar um por um de seus participantes. Perguntemos a cada político se agiria da mesma forma, estivesse ou não invisível. Aposto que quase todos responderão que seu comportamento seria sempre o mesmo, independente da invisibilidade. Duvido! O ser humano não é esse "bom selvagem" rousseauniano. O anel de Giges, nos dias atuais, causaria muito mais danos à sociedade do que os apontados até agora se, especificamente, fosse jogado de presente no colo dos nossos políticos. Se muitos já são depravados, corruptos, sem o manto da invisibilidade, que seria do mundo hoje sob os delírios de uma caterva protegida pelo anel?
Desculpem-nos por trazer à baila um texto tão complexo e duro, logo no final do ano, quando o ideal seria focar um cenário de esperança e confraternização. Perdoem-nos cair, para exemplo, mais uma vez, sobre os costados dos políticos. Mas, não são eles quem mais têm amargurado nosso dia a dia? Como paralelo e releitura, a obra de Tolkien, O Senhor dos Anéis, defende os Hobbits, como dignos e capazes de transportar o anel, pois, como os mais humildes, são os mais resistentes ao descontrole do poder.
Sirva de guia para o ano vindouro a lição de Platão. A Verdade deve habitar nossas vidas, não somente quando estamos sendo vigiados, visualizados, mas principalmente quando ninguém nos vê, no silêncio da solidão e do desamparo.
Em 2024, que você, leitor deste despretensioso texto, seja aquele cara digno e impoluto capaz de transportar o anel de Giges com absoluta retidão em todos os momentos de sua vida. O importante não é parecer ser bom, mas ser bom de verdade. Reflita, por favor! O mundo anda carente de pessoas de fibra que saibam como proceder, independente de apadrinhamento e de cobertura desonesta. Seja autêntico. Feliz Ano Novo, sempre com Cristo no coração.