A alma da noite está plena de seduções cósmicas. A solidão desce pesada em nosso ser e consolida um cenário negro que se assenta na própria consciência noturna. Vai nascendo, assim, uma identidade entre uma dupla solidão, a da noite e a humana.
É o momento propício para trabalhar uminstante mágico em que tudo se cobre de negro, horas que por enquanto são vida e morte juntas. A hora em que nada é de ninguém e tudo é de todos. Caem as folhas das árvores, assobia manso o vento longínquo querendo comungar conosco a solidão silenciosa e portadora de mistérios edogmas. É o convite para vivenciar cada minuto, cada segundo que compartilha com o amadurecimento lento e invisível dos frutos e com o olharmudo do cobertor de estrelas estendendo-se sobre o silêncio negro e envolvente do cosmo.
Um galo que canta ao longe quebrando o silêncio ou o sapo que coaxa fazendo dueto quase imperceptível são encantos a coroar nossos devaneios e a marcar esses momentos despreocupados conscientemente com a perpetuação. São esses sinais repentinos, que não duram senão um instante, as formas mais marcantes, impossíveis de serem apagadas. Um fragmento de barulho, um apito de um trem na encruzilhada são indícios de vida, de corações palpitando junto com o nosso e marcando cada momento como único e inesquecível. Tudo a alma vaianotando para sempre.
Paralelo ao farfalhar das árvores que acariciam a noite, esqueço de mim mesmo, de meus desprazeres, e mergulho na negra solidão envolvente. Tudoparece mais simples, mais calmo, mais sossegado. Na simplicidade da noite está contida a complexidade do universo com seus enigmas e interrogações. A solidão do mundo nesta hora é a minha solidão. Somos um só. Estamos protegidos pela escuridão total que acalenta as árvores, as flores, o córrego, meu coração e o coração da humanidade.
Que momento de paz, de simplicidade, de calma, de tranquilidade. A noite é mágica porqueprotege tudo, além de acariciar meus devaneios e me deixar fora dos desprazeres do cosmo. Tudo repousa silente porque a noite e a doçura fizeram um pacto de amor e amizade onde não há lugar paraa insegurança nem para a frustração. Nada está morto agora, pelo contrário, dentro desse silêncio pulsama vida, os corações, as almas e mesmo no silêncio que tudo acoberta há um murmúrio de vozes, de vozes amortecidas, há um ritmo que não se vê, mas se pode sentir nos refolhos do coração. Eu e o mundo. O mundo e eu numa simbiose que poderia durar eternamente. É bom ficar assim amortecida, com a razão anestesiada, numa letargia que nem me mata e nem me reanima a ponto de me deixar lúcida.
Alguns versos deJules Supervielle falam lindamente desses momentos diáfanos que raras vezes invadem nossa vida:
Cesoirassissurlebordducrépuscule
(Esta noite sentado à beirado crepúsculo)
Etlespieds balancés au-dessusdes vagues
(E os pés balançados acima das vagas)
Jeregarderaidescendrelanuit: elle se croiratouteseule
(Olharei a noite descer: elase acreditará inteiramente só)
Etmoncoeur me dirá: fai de moi quelquechose
(E meu coração me dirá: faz de mim alguma coisa)
Que je sente si je suis toujourstoncoeur.
(Que eu sinta que sou sempre teu coração.)
Dra. Maria da Glória De Rosa
Pedagoga, Jornalista, Advogada
Profª. assistente doutora aposentada da UNESP