Um país não imagina a força de seu povo. Quando precisa, pode recorrer a ele, sem duvidar, pois obterá a resposta esperada. Quando escrevo sobre isso, estou pensando em Brasil, em gente brasileira, não em um nacionalismo burro, cego, mas em um povo com alma, solidário, inimigo de traições, corrupção, mentiras. Estou pressentindo, mais que nunca, a necessidade imediata deste país contar com seus filhos. Os acontecimentos recentes estão nos empurrando para uma tomada de decisão instantânea. Uma reflexão em cima da história mostra-nos exemplos espetaculares de pessoas unidas em defesa de seu pedaço de chão. Talvez o leitor tenha ouvido falar pouco na Resistência francesa. Após a ocupação da França pela Alemanha nazista, começaram a surgir movimentos de resistência ativa e passiva, nos quais até estrangeiros participaram. Surgiram células de oposição, de combate ao inimigo, de guerrilhas, inconformadas com a submissão ao peso do coturno nazista.
Um belíssimo livro, de nome "Resistência", escrito por Agnès Humbert, conta a história dela, como desafiante de Hitler. Belo exemplo de intelectual que, pelo fato pregar cartazes ou distribuir panfletos contra a opressão, foi condenada a cinco anos de prisão, tempo que aproveitou para escrever, a duras penas, um diário descrevendo as misérias pelas quais ela e seus companheiros passaram. Foram dias de degradação moral e física: fome, trabalhos forçados, maus tratos, doenças, humilhação. Sob sua pena, a Resistência, longe de ser um assunto tabu, torna-se o tema nu e cru de uma temporada de brutalidade e fanatismo. "Existem lembranças que devem ser mantidas intactas e preciosas, sem jamais ser defloradas", ela escreve. E eu me pergunto, guardadas as devidas distâncias, será que nós brasileiros seremos capazes de manter a lembrança desses dias de lambança, mentiras, corrupção pelo quais vimos passando? Ou será que, amanhã, quando estivermos diante da urna, vamos nos esquecer destes instantes de humilhação, de vergonha? Apagar-se-ão de nossa memória o monossilábico "não", a negativa de nossos mandatários diante das acareações e interrogatórios a que foram submetidos? Ninguém viu nada, ninguém sabe de nada, ninguém é dono de nada, ninguém recebeu dinheiro de ninguém, ninguém deu dinheiro para ninguém. "Você recebeu propina?" "Não!" "Você tem dinheiro no exterior?" "Não!" "Você era intermediário do dinheiro para seu partido?" "Não!" Meu Deus! Todos ficaram desmemoriados, não se lembram de nada, não sabem de nada...
Agnès, a fim de escrever "Resistência", faz anotações no calor da ação, por isso frustra as armadilhas da memória. Amanhã ninguém poderá dizer que não aconteceu. Dormitórios infectos, frio de enregelar os ossos, tapas na cara, tudo isso não poderá jamais ser relegado ao obscurantismo. Só tenho medo que, em dias não muito distantes nós, brasileiros, esqueçamos da massa dos bilhões que foram tirados do BNDES para, em prejuízo de nossos irmãos miseráveis, servirem às negociatas, para fazer benfeitorias em outros países, para comprar usinas por preços superfaturados, para entrouxar dólares em cofres de empresários inescrupulosos e bandidos. Enquanto alguns enriqueceram, o povo continua miserável, sem meios de transporte, sem teto onde morar, sem saúde, sem água potável, sem esgoto, sem emprego.
O que muito admirei nesse livro de Agnès Humbert foi sua capacidade de agregação. Soube, mesmo em meio à provação, criar laços, permitindo que a resistência se organizasse, ampliasse e diversificasse. Correndo incansavelmente atrás de conexões possíveis, sublinha sua obstinação em descobrir novos contatos e sua absoluta dedicação aos amigos e ao país. O que vejo por aqui não é exatamente isso. Vejo um país dividido entre "nós" e "eles". Entre "coxinhas" e "pão com mortadela". Quanta parvoíce, quanta estupidez, quanto palavreado indigente! Não diviso união, cooperação, solidariedade, amizade, preocupação em manter a lei, em ratificar ordens de prisão, em elogiar o mérito por puro despeito, em evitar o ressentimento ou inveja.
Líderes! Líderes é disso que precisamos. Muitas Agnès, e outros tantos franceses que foram assassinados pelos fanáticos nazistas, que queriam implantar, de qualquer maneira, sua intolerância, seu faccionismo. A verdade não é patrimônio de uma malta, de uma súcia. Está aí para ser discutida, pensada, e ser patrimônio de todos. Que o exemplo de Agnès Humbert nos contagie e nos faça entender a força de um povo bem intencionado que só deseja viver com dignidade...
Se Paris viveu sob a suástica, nós brasileiros estamos vivendo sob o pálio da falsidade, da mentira, da desavença. Quisera poder parafrasear Agnès e vivenciar um movimento encorajador de revolta e resistência que logo se transformasse em força libertadora.