Àqueles que nos derem o prazer de ler estas linhas, um pequeno conselho de quem tem mais experiências da vida: não percam tempo lendo coisas sem importância, lendo autores insignificantes, deleitando-se com ideias pobres e vazias. Se vai ler um romance, por exemplo, procure um autor consagrado, de renome ou mesmo alguém que esteja despontando na literatura, mas com recomendações abalizadas. Sem mais delongas, explicaremos o porquê dessa introdução. Vou indicar aos leitores um romancista de peso. Trata-se de Milan Kundera. Vale a pena conhecer Kundera.
Houve um tempo na minha vida em que mergulhei com profundidade nesse autor e, praticamente, li a maioria de livros dele. E, sinceramente, não sei dizer qual o melhor. Todos excelentes, magistrais. Pois hoje escolhi, aleatoriamente, um deles intitulado A Cortina, trad. bras., SP, Cia das Letras, 2006, 156 p. Sim, meus amigos, 176 páginas apenas, mas, que profundidade, que mergulho abissal no mundo das ideias! O livro é uma incursão ensaística pela arte do romance. Qualquer romance deve adentrar a alma das coisas: ser capaz de revelar aspectos desconhecidos da natureza humana. O romance é uma arte "sui generis", autônoma, possui gênese e moral próprias, transcende fronteiras espirituais e temporais. Kundera antecipou-se à filosofia ao voltar-se para a análise existencial muito antes do existencialismo tornar-se moda na Europa. Radiografou a "sociedade do espetáculo" antes que a ciência política o fizesse e anteviu a importância da burocracia.
A partir de Cervantes, o romance rasga a cortina de um mundo maquiado e pré-interpretado. Kundera nos conduz da Europa Central à América Latina evidenciando os laços que unem a literatura universal e que, ao nos distanciarmos de contextos locais, nos proporcionam uma visão do conceito maior, revelando o valor estético do romance.
Convidamos o leitor a deliciar-se com algumas "joias" de literatura colhidas nas páginas desse precioso opúsculo em epígrafe. O homem, diz Kundera, se torna célebre quando o número daqueles que o conhecem suplanta o número daqueles que ele próprio conhece. O reconhecimento que desfruta um grande cirurgião não é a glória: ele não é admirado por um público, mas pelos pacientes, pelos colegas. Vive em equilíbrio. A glória é um desequilíbrio. Há profissionais que arrastam a glória atrás de si totalmente, inevitavelmente: políticos, modelos, artistas.
Seria muito bom se cada um de nós observasse este conselho que Kundera nos dá, quando afirma que quanto mais se observa uma realidade com atenção e obstinação, mais se compreende que ela não corresponde à ideia que todo mundo faz a seu respeito. É um convite ao juízo criterioso, ao julgamento sem precipitação.
Nessa mesma pequena grande obra em análise, Kundera faz observações judiciosas sobre os jovens, sobre a arte. Há palavras sensatas sobre a burocracia. Para encerrar estas considerações, nos fixaremos, então, sobre uma nesga a respeito dos ganhos que a burocracia traz para a vida de qualquer um: ... durante a viagem, diz o romancista, pago com um cartão de crédito, e cada um dos meus jantares é registrado pelo banco de Paris e assim colocado à disposição de outros burocratas, por exemplo os do fisco ou, no caso de eu ser um suspeito de algum crime, da polícia. Para as minhas pequenas férias, uma brigada de burocratas se põe em movimento, e eu mesmo me transformo em burocrata da minha própria vida preenchendo formulários, enviando reclamações, organizando
Milan Kundera é isso tudo e mais alguma coisa, é sinônimo de ecletismo, de cultura geral, de sabedoria... Compartilhe!