Um pouco de cultura não faz mal a ninguém. Pergunto ao leitor se ele já ouviu falar no escritor indiano Salman Rushdie. Nascido numa família muçulmana, enfrentou ameaças de morte por seu quarto romance Versos satânicos, lançado em 1988. Em 1989, o aiatollah Ruhollah Khomeini, líder supremo do Irã, pronunciou uma fatwa, ou ódio religioso, pedindo aos muçulmanos que matassem o escritor por blasfêmia. Lembro-me que o romancista precisou manter-se escondido, guardado por seguranças todo esse tempo. É de imaginar-se o terror que esse homem passou, escondendo-se, mantendo-se fugitivo. O governo iraniano, em 1998 pronunciou-se contra a fatwa, afirmando que não a apoiaria mais. Desde então, Rushdie tem vivido de forma relativamente aberta. Ocorre que, em 2017, o sucessor de Khomeini assegurou que a fatwa ainda estava vigorando, o que significa que o relativo sossego de Rushdie acabara.
No dia 12 de agosto, o romancista estava pronto para num palco para realizar uma palestra numa organização beneficente no oeste do estado de Nova Iorque quando sofreu um ataque. Hadi Matar, de 24 anos, invadiu o local e, mascarado e vestido de preto, atacou o escritor. Ele comprou uma entrada para a apresentação de Rushdie, que já estava no palco quando sofreu o ataque, caiu no chão, foi socorrido e levado ao hospital de helicóptero.
Um policial que estava no evento levou o agressor sob custódia. Rushdie caiu no chão e foi cercado por um grupo de pessoas que suspendeu suas pernas, aparentemente para enviar mais sangue para a parte superior do corpo, enquanto o agressor foi contido. Rushdie deve perder um olho, além de ter nervos de seu braço cortados e o fígado comprometidos. A informação foi confirmada por seu agente, Andrew Wylie, em nota à imprensa, esclarecendo ainda que o romancista passou por cirurgia, está em um respirador e não consegue falar. "As notícias não são boas. Salman provavelmente perderá um olho: os nervos de seu braço foram cortados e seu fígado foi esfaqueado e danificado", disse Wylie.
Trata-se de mais um crime abominável cometido pela fatwa contra um dos maiores escritores de nossa geração e conhecido por suas posições libertárias. Autoridades iranianas não dão paz a Rushdie, desde a publicação de Versos satânicos, romance fantasia considerado ofensivo a Maomé e à fé islâmica. Mas a produção literária de Salman Rushdie é farta: são inúmeros romances sensacionais que alcançam um público recorde em virtude da qualidade de sua obra.
Já que um simples romance pode provocar tanta celeuma, vou presentear a curiosidade do leitor com um breve resumo de Versos satânicos.
Dois homens caem do céu para a terra, depois que terroristas explodem um avião em que viajam. Os dois são indianos e atores. Chegam incólumes ao solo da Inglaterra, um como anjo, outro como demônio. Um é apegado à sua origem, outro decidido a nacionalizar-se. O autor vê a Inglaterra da Margareth Tatcher como uma metáfora do Ocidente. Transitando entre o real e o fantástico, entre o sagrado e o profano, entre o bem e o mal, este romance é autobiográfico, principalmente em uma questão central: quem sou eu? Desde a Grécia clássica essa pergunta é um divisor de água entre o homem ocidental e oriental. Ela é impensável no sistema religioso-filosófico da Ásia – é esse o pecado imperdoável de Rushdie. A liberdade individual, considerada como um bem maior no Ocidente, é uma ameaça ao sagrado, á submissão á palavra revelada. Considerado como blasfemo, Rushdie recebeu a sentença de morte do islamismo.
Rushdie buscou uma ponte entre extremos, a conciliação dos opostos, uma resposta para a vida. A obra transcende o problema específico do emigrado que flutua para aplicar-se a todos os cidadãos de um mundo dilacerado.
Dra. Maria da Glória De Rosa
Pedagoga, Jornalista, Advogada
Profª. assistente doutora aposentada da UNESP