Você, alguma vez ouviu uma pergunta tão estúpida como esta? Nunca bateu em seus miolos uma indagação desse tipo, sem pé nem cabeça? Impossível nunca ter irrompido em seus neurônios uma questão meio louca, uma pergunta meio babaca, para a qual você não tenha resposta. Pois para mim, já. O bisturi do cirurgião já cutucou a alma? Se acabar o gás da gravidade, todo mundo vai sair voando por aí?
Não sou a única no mundo a viajar nas nuvens e a pensar em fantasias. Vou falar a verdade. Quem me inspirou a fazer uma indagação desse tipo foi ninguém menos que Yuval Noah Harari, israelita, ph.D. em história pela Universidade de Oxford, autor do best-seller internacional Sapiens: Uma breve história da humanidade. Só que a inspiração veio de outra fonte: de outro livro dele intitulado Homo Deus. Num subtítulo, ele escolheu uma frase singular: "O prego no qual o universo está pendurado". Foi daí que me veio a ideia meio maluca a respeito da fragilidade do universo. Sim, porque a escolha de um subtítulo como esse só pode levar à crença de uma ameaça terrível. Então, é compreensível que eu me baseie nele para escrever estas linhas.
Harari afirma que o tecno-humanismo, como todas as seitas humanas, santifica a vontade humana e vê nela o prego no qual o universo inteiro está dependurado. O tecno-humanismo pode resultar em um downgrade, isto é, na degradação dos humanos. O sistema pode preferir humanos degradados, não porque seriam detentores de destrezas super-humanas, mas sim porque lhes faltariam algumas qualidades humanas que perturbam o sistema... É interessante o exemplo ao qual Harari recorre para dar mais clareza às suas ideias: o fazendeiro sabe que o bode mais esperto do rebanho é o que causa mais estrepolias, e é por isso que a Revolução Agrícola envolve a degradação das aptidões mentais dos animais. Preste atenção nesta frase: a segunda revolução cognitiva sonhada por tecno-humanistas poderá fazer o mesmo conosco.
O prego no qual o universo está dependurado, para Harari, é a vontade humana. O progresso tecnológico poderá tornar possível a reformatação do espírito humano? Não é fácil identificar a autêntica vontade humana. Quando tentamos ouvir a nós mesmos, frequentemente somos atordoados por uma cacofonia de ruídos que entram em conflito. Inúmeras vezes não queremos ouvir nossa voz autêntica porque ela pode revelar alguns segredos inconfessáveis. Talvez você mesmo, ou eu, evitemos nos aprofundar nas investigações para nos conhecermos de verdade. Uma advogada bem sucedida pode reprimir uma voz interior que lhe recomenda uma parada para ter um filho. Um policial com sentimento de culpa tenta calar a voz interior que o atormenta sobre as atrocidades que cometeu. Um jovem inseguro sobre sua sexualidade segue uma política pessoal de evitar uma voz sobre seu segredo. Diante de situações parecidas, o humanismo
não tem uma solução padrão, capaz de resolver tudo. Então, ele recomenda que ouçamos as mensagens interiores mesmo que nos assustem e que sigamos seus conselhos independentemente dos empecilhos.
Já o progresso tecnológico é muito diferente. Ele não quer ouvir nossa voz interior, quer controlá-la. Isso é complicado porque a recomendação humanista de ouvir a voz interior arruinou muitas pessoas. Às vezes, é melhor calar essas vozes interiores destrutivas. O mandamento humanista não é mais tão óbvio. Como decidir quais vozes devemos silenciar e quais amplificar? Para Harari, jamais poderemos lidar com essas tecnologias enquanto acreditarmos que a vontade humana é a fonte suprema da autoridade. As experiências humanas não são sagradas e o Homo sapiens não é o ápice da criação. Afinal que vantagem os humanos levam sobre as galinhas? Supostamente, os humanos tem emoções mais profundas e aptidões intelectuais superiores. Se fôssemos capazes de criar um sistema de processamento de dados que absorvesse mais dados ainda do que um ser humano e os processássemos com mais eficiência, não seria esse sistema superior ao humano da mesma forma que o humano é superior ao da galinha?
Temos a mania de glorificar o cientista individual, mas um grande número de pesquisas e criações científicas é produzido pela colaboração de grande número de pessoas. A Wikipedia não é escrita por todos nós? A verdade é que nos estamos transformando num pequeno chip dentro de uma realidade caótica incompreensível. Segundo o dataísmo, o universo consiste num fluxo de dados. A tecnologia está avançando tão rápido que governar tornou-se em administrar. Sapiens usaram sua vantagem para invadir o mundo, no entanto, perderam o controle entre si. Durante 70 mil anos, os humanos se espalharam, depois se separaram em grupos e por fim se fundiram novamente. Quando se uniram de novo, cada um trouxe um legado de pensamento.
Se o gênero humano é um sistema único de processamento, qual seria seu output (ação de produzir; produção). Segundo os dataístas seria um processamento de dados mais efetivo, chamado internet de todas as coisas. Preste atenção: uma vez cumprida essa missão, o homo sapiens desaparecerá.
Essas deduções de Harari são mais possibilidades que profecias. Quando pensamos no futuro, nossos horizontes são limitados por ideologias: democracia, capitalismo etc. A ampliação de nossos horizontes pode ser um tiro no pé por nos deixar mais confusos ainda. Em tempos antigos ter poder significava ter acesso a dados. Hoje ter poder significa saber o que ignorar. O que é mais valioso: a consciência ou a inteligência?
Dra. Maria da Glória De Rosa
Pedagoga, Jornalista, Advogada
Profª. assistente doutora aposentada da UNESP