Deitada no sofá de minha casa olho a chuva que cai mansamente lá fora. São os últimos dias de março e os primeiros de um outono que já batem na porta anunciando um friozinho esperado e festejado com gratidão. Tomada por uma modorra descompromissada e gostosa sou gratificada pela minha santa serviçal com uma bandeja de café e um prato de bolinho de chuva. Céus! De onde surgiu essa alma generosa que vem me acariciar com esse manjar! Bolinho de chuva, já nem me lembrava mais dele... a esta hora me traz doces recordações. E como combina com outono. Vem a calhar com este cair da tarde em que todas as horas parecem encolher-se para saudar o angelus, que a alguns momentos virá santificar-nos.
Na quietude de minha sala não demoro a perceber porque o tempo com sua sabedoria escolheu batizar o bolinho de chuva com esse nome tão singelo e matizado de tanta lembrança e saudade.
Volto, então, à minha modesta casa dos meus tempos de infância. O pensamento me arrasta com força para trás e me acomoda em lembranças fugidias. Ao redor da mesa mais modesta ainda, revivo a cozinha de fogão de lenha, minhas irmãs e eu bebericando um café quentinho e minha mãe pacientemente servindo-nos bolinhos de chuva. Quanta quietude e ao mesmo tempo quanto amor naquele ambiente simples e quase rude onde reinava tanta paz e tanta união! O bolinho de chuva, o prato principal, vinha carregado de carinho maternal e união fraterna.
O outono que bate à porta, com suas silenciosas confidências parece irmão da lágrima. O que acontecia sempre naquela sala à hora do café foi neste instante uma revelação. E, como diz Rubem Alves, a revelação nunca é um encontro, uma coisa nova, nunca vista. É sempre uma experiência de reconhecimento. Sim, percebo agora o encantamento daquelas horas passadas com a família, o significado do café, do bolinho de chuva ontem e do outono hoje, como uma estação da vida e não como um dia do calendário.
Octavio Paz dizia que o que estamos vendo pela primeira vez, já havíamos visto antes. E à surpresa segue-se a nostalgia. Aquele lugar do passado ficou trancado e só retorna agora na memória. Essas horas antigas, que pareciam esquecidas, voltaram com força carregadas de velhice.
E neste odor da tarde, como diz Cecilia Meireles, quando começa o cansaço dos homens, vejo-me na minha sala, recordando o que sempre fui, uma saudosista que plantou lembranças para serem recordadas um dia, como se fossem a primeira vez. Se é verdade que o que vemos não é o que sempre vemos, mas o que somos, devo concordar que sempre vivi para recordar um dia o que fui.
Não me importa o presente. Me importa agora a lembrança trazida pelo cheiro quase morno de um bolinho de chuva. As carícias das lembranças, de um odor, de um riso brotado naquela longínqua sala em que minha mãe colocava o pão em nossos pratos e comemorávamos como pássaros chilreando de alegria.
Enquanto os pingos outonais continuam batendo na janela de minha sala, hoje agradeço aos céus a felicidade crepuscular de poder experimentar de novo a mesma sensação provocada pelo bolinho de chuva da minha infância!